Penso que todos os primos da minha geraçao guardam uma grande recordação dela e gostam de a ver retratada desta maneira e assim transmitir a sua memória aos mais novos.
(Tenho o original scaneado. O texto é mais completo e inclui desenhos de utensílios agricolas da época. Posso enviar por email a quem destiver interessado).
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Campo Maior:
Com os meus melhores cumprimentos, venho por esta via, junto do Sr. Presidente, transmitir uma "faceta" do seu concelho que decerto nunca alguém lhe transmitiu e que poderá ter muito valor para a história de Campo Maior.
Atrevo-me a escrever o que recordo, porque vejo muitas vezes na televisão o Sr. Presidente e porque fico encantado com o seu dinamismo e vontade de tornar o seu concelho um exemplo de bem viver e dar valor ao passado.
Sendo assim, aqui vai:
Tenho 70 anos de idade, sou aposentado da função pública e sou ex-combatente, em Moçambique - 1966/1968. Mas, quando há 57 ou 58 anos, eu tinha 14 ou 15 anos, fui um pequeno elemento de um grupo de "ratinhos" e fomos ceifar durante 40 dias para o Monte da Boa Vista, em Ouguela, o qual era propriedade da Sr.ª D. Sofia Tello da Gama Minas.
O grupo era organizado na minha aldeia - Juncal do Campo, Castelo Branco - e acolhia homens de várias aldeias vizinhas como: Freixial do Campo, Chão-do-Vão e Barbaído. Íamos em meados de Maio e iniciávamos a tarefa a ceifar fava para secar. Depois, até ao fim, era ceifar cevada especial que se destinava às fábricas de cerveja.
A nossa chegada a Campo Maior era controlada pela GNR, porque os naturais de Campo Maior (população quase inteiramente rural) não nos acolhia com "bons olhos" já que, no seu entender, lhes íamos roubar o trabalho e, desde logo, inviabilizar as suas reivindicações laborais. A GNR recebia-nos, no nosso autocarro, às portas de Campo Maior e, sob sua escolta, levava-nos até ao monte.
A “contrata”, como era conhecido o acordo, tinha a duração de 40 dias; comida e dormida no campo onde decorria a ceifa, eram por conta da “senhora”.
O grupo oscilaria entre os 35 e 40 homens e alguns adolescentes, como era o meu caso. Eu, com 14 anos, fui escolhido pelo “manajeiro” – o responsável pelo grupo – para ficar encarregue da função de “manteeiro”, para transportar comida, água e correio, para o “corte”, ou seja, para o local onde o pessoal ceifava. Para o efeito, foi-me distribuída uma carroça e uma égua que eu baptizei de “Menina”.
Tive a sorte e o privilégio de encontrar como que “um pai e uma mãe”, nas pessoas do casal responsável pela cozinha e pela copa. Ele chamava-se António e ela Libânia. Trataram-me como um filho e isso, eu nunca esqueci e já lá vão 58 anos!...
A “contrata” tinha um valor fixo. Claro que era superior ao que os trabalhadores fixos do monte auferiam. Daí, o desagrado deles pela nossa presença. De salientar que, quer nós, quer os trabalhadores do monte, em conjunto, tornávamos o Monte da Boa Vista, uma autêntica aldeia. Era, de facto, muita gente: arrieiros, pastores, porqueiros, vaqueiros e outros… Havia também muitos animais e muitas “parelhas de mulas”. Máquinas havia poucas: haveria uma ceifeira antiga que avariava constantemente; haveria um ou dois tractores a que se acoplava o engenho que servia de “malhadeira”, (ou debulhadora) separando o cereal da palha.
O Monte da Boa Vista tinha uma área tão grande que nós nem sabíamos onde terminava.
À entrada para Ouguela, do lado direito e junto à ribeira, perto da fronteira com Espanha, havia o posto da Guarda Fiscal. As coberturas das casas do quartel eram de colmo, uma espécie de palha trabalhada para substituir as telhas.
Durante os quarenta dias a comida era sempre igual. Ao almoço, grão com muita e boa carne de porco e beldroegas. Era simplesmente maravilhoso. Antes, de manhã, era o pão fatiado e bem regado com o bom azeite da casa, alhos, azeitonas e bom queijo, pequeno e seco mas, tudo muito bom. À tarde, era água, azeite, vinagre e pão migado aos pedacinhos. O complemento da noite era o queijo, o bom pão (marrocate) que ia diariamente de Campo Maior e algum enchido que sobrara do grão do almoço. Diga-se, que era tudo com abundância.
No último dia, a Sr.ª oferecia um almoço especial: Badana (carne de ovelha velha) em caldeirada com batatas, que era uma delícia. Só nesse dia é que era acompanhada de bom vinho tinto. Para esse almoço, vinha o “feitor” que trazia e entregava ao “manajeiro” o dinheiro vivo correspondente ao total de “ratinhos” e que este distribuía em partes iguais, excepto aos adolescentes como eu. Não me recordo de quanto seria, pois isso era com o meu pai que também estava no grupo. Terminada a “contrata”, ainda no Monte da Boa Vista, ficava a mesma logo acertada para o ano seguinte.
Terminada a “festança” e o “acerto de contas”, já lá estava o autocarro da empresa “Martins Évora” que nos levava de volta às nossas aldeias.
Da Sra. D. Sofia Tello da Gama Minas, recordo-me porque cruzava muito com ela devido à minha presença quase constante na cozinha do monte. Já nessa altura a senhora era viúva. Lembro-me que se tratava de uma senhora “franzina”, “pequenina”, mas muito activa. Ao lado da cozinha havia uma enorme capoeira de onde ela, todos os dias, retirava muitos, muitos ovos.
Há uns anos atrás, fui visitar o monte. Mas … nada estava como era. Gente, não havia. Ovelhas, porcos, galinhas … nada! Apenas um jovem casal de ucranianos que habitavam na zona da grande cozinha-copa do antigo monte e que me acompanhou na visita. O que vi foram as muitas vacas e a indicação de “Caça Protegida”.
E, pronto, Senhor Presidente. Gostava que mandasse responder à minha carta, dizendo se gostou e se tem interesse para a história de Campo Maior. Para qualquer esclarecimento, estou ao seu dispor. Alerto que, porque não concordo com o “Acordo Ortográfico”, escrevo como aprendi na minha “grande” 4ª Classe.
Respeitosamente
Luís Lopes Magueijo